terça-feira, 27 de novembro de 2012



 "Em um céu, fragmentado, de pequenas nuvens ... de formas várias ... perpassadas por estrelas ... o coelho ... inteiro !!"

domingo, 11 de novembro de 2012






O surgimento da indústria cosmética

 

       Havia inicialmente a proibição ao desenvolvimento de atividades industriais na colônia, uma vez que a corte não admitia a possibilidade de seu domínio tornar-se financeiramente independente. Tal alvará foi revogado quando da chegada da família real ao país, tendo seu regente optado por medidas protecionistas, sobretaxando bens de consumo provenientes do exterior. Medida tomada no afã de alavancar o desenvolvimento industrial de um país com uma economia essencialmente agrícola, que ainda conservava um regime escravagista, o que impedia a existência de mão de obra para tal empreendimento, havia carência de um mercado consumidor, que fosse constituído por trabalhadores assalariados.*

      Medidas institucionais e sobretaxas à parte, o imperador exercia sobre ela, sobre suas células, uma capacidade cosmética digna de aprofundado estudo. Verdade que trazia-a escrava, cativa de seus encantos, incapacitada de sequer pensar na possibilidade de qualquer outro mercado consumidor. A cada vez que se mirava ao espelho a suspiradora podia constatar o bem que esse homem fazia-lhe, sua pele, cabelos, e por que não dizer, até sobre o brilho dos seus olhos, dele, tinha a influência. Presa ela ficara, desde ao primeira troca de olhares, naquele visgo.

       Muitas haviam sido as vezes que ela pode constatar aquela influência em seu corpo. Desde que encontrara pela primeira vez com os olhos de anzol, havia sentido até no movimento de seus quadris uma sutil diferença, movia-se agora com uma sensualidade antes desconhecida, como se todos os seus passos fossem para encontrá-lo, caminhava lascivamente em sua direção, sentindo o calor daquele olhar sobre si. A cada vez que seus olhos pousavam sobre ela, renovava-se algo, efeito a que nenhuma vitamina E podia-se comparar, eliminava radicais livres, ainda nem descobertos, de forma assombrosa.

       Por mais que tentasse fugir desse contato, e realmente tentara, infrutiferamente, por muitas vezes, não podia negar o bem que faziam-lhe, seus olhares, sorrisos e indelével presença. Fazia bem a ele, o exercício, e a ela, aqueles olhos famintos. Ainda podia ouvir-lhe acariciar os ouvidos, e renovar-lhe o corpo e a alma, ao recitar Neruda, em voz cálida e rouca ...

“... sin que seas, en fin, sin que vinieras
brusca, incitante, a conocer mi vida,

 ráfaga de rosal, trigo del viento,

y desde entonces soy porque tú eres,
y desde entonces eres, soy y somos,
y por amor seré, serás, seremos.”

(Pablo Neruda, Soneto LXIX)

 

       Fazia-lhe bem à mente, manter-se cativa tinha lá suas vantagens, tanto quanto fazia-lhe ao corpo, ao despertar-lhe, todos,  os sentidos.
 
* Agradecimentos à minha amiga Caroline Zanini, pela ajuda na pesquisa histórica.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Paixão sim !!!





http://letrasfeevale.blogspot.com.br/2012/10/tv-feevale-especial-dia-do-professor.html

quinta-feira, 4 de outubro de 2012





... A janela ...

 

       Ao caminhar pelo Paço, inevitável era não voltar seus olhos à janela, a mesma que por tanto tempo foi garantia da presença dele. Um vidro aberto e uma luz acesa diziam-lhe, com toda certeza, que havia alguém ali, que talvez em alguns minutos estivesse caminhando por entre os passantes ou pela névoa, se houvesse.

       Durante uma semana ela havia contemplado os vidros, a cortina, ambos fechados, além da falta de luz. Fazia-lhe falta não a luz que, porventura, seria gerada por alguma vela ou mesmo uma lamparina ... mas a luz vinda daquele olhar. A suspiradora diria-lhe, caso houvesse oportunidade, ”Senti na pele a falta dos teus olhos.” – frase que viera-lhe à cabeça ainda naquela manhã e que ela, anotou com letra apressada, para não fugir-lhe a ideia.

       O (des)encanto havia se abrandado, a (des)coragem já não apresentava cores tão vivas como há algum tempo atrás, como em tantas outras oportunidades, a tentativa de colocar um ponto final havia sido infrutífera. Ao ponto que seria o final, agregava-se como em tantas outras vezes, dois pontos, formando então mais reticências. Ah ... as reticências ... Que acompanhadas dos demais sinais de pontuação eram, com o perdão do trocadilho, o ponto alto da história.

       Estivera, o imperador, “fora do ar”. Mas não do mundo e, nunca, fora dela, a suspiradora. Que quando já não mais esperava por uma resposta, e que tinha visto, em si, diminuir senão quase desaparecer o prazer e a necessidade de, cuidadosamente, amealhar palavras, sentiu renovada a inspiração ao ler a resposta que veio bater-lhe à porta. Na verdade, ela precisou suspirar alguma prosa para elaborar o acontecido anteriormente, recorreu aos versos de Drummond e suas “Sem-razões” e decidiu-se por compartilhar a narração do episódio com aquele que o tinha vivido. E veio a resposta, a resposta da resposta, a réplica, e a tréplica (seria uma necessidade dela ter a última palavra? Ou seria aquela a tréplica adiada/evitada há quase doze meses, por receio de forçar uma resposta? Não nos cabe questionar ...).

       Conjecturas, faltas de inspiração, (des)coragens e (des)encantos à parte – não há nessa conclusão, absolutamente, nenhum queixume, apenas uma constatação e a volta da desejada, e agora festejada, inspiração -, passou pelos olhos da observadora suspirante uma sombra, não de alguma luz ou do vento empurrando a cortina, mas de uma (in)explicada tristeza ... ao olhar ... e não ver ...

      

      

quinta-feira, 20 de setembro de 2012




A (des)coragem do imperador e o (des)encanto da suspiradora.

 

       Ele admitiu a falta de coragem, ela tirou da renda da manga do delicado vestido, um discurso que versava sobre intensidade de sentimentos, dores e angústias. Talvez tenha sido assim ... ou não, talvez ela tenha sentido os olhos dele sobre si e resolvido que aquele era o momento adequado – se é que havia momentos ou locais adequados – de, no melhor estilo “escuta aqui”, dizer-lhe umas boas.

       O imperador, aquele ser que caminha pela névoa, carregando sobre os ombros o peso de suas escolhas, talvez acredite não ter direito a doses, ainda que homeopáticas, de prazeres mundanos e enlevos poéticos. Haverá espaço em sua pragmática existência, para os mesmos devaneios que povoam o imaginário masculino? Não há como negar, palavras do próprio protagonista, o que o corpo claramente manifesta, tampouco o que lhe sai pelos olhos como fumaça esvaindo-se de algo que queima. E queima como a chama que por tantas vezes se tentou apagar ... inutilmente, vãs tentativas ...

       A Suspiradora, metida a entendedora, já tentara analisar os motivos que o levavam a caminhar pela névoa, se a solidão, em meio à multidão, seria uma opção ... quiçá. Para mostrar-se aos olhos ávidos por uma aparição sua, que conferisse aos súditos a segurança de uma imagem sólida ... e ... só ...

Ela conjecturava sobre onde andariam a ousadia que perpassara aquele olhar quando por entre frestas, os intertextos presentes nas mensagens, os significados semi-ocultos nas entrelinhas e todos os sentidos pelos quais tantas reticências foram habitadas.

       Havia nessa relação(?), tal como no discurso sacado da manga, intensidade(!). Uma intensidade inerente à Suspiradora, que só sabia sentir se fosse assim, espontâneo, transparente, avassalador, intelectualmente físico e fisicamente intelectual, sem prescindir de delicadeza. Céticos duvidariam, cientistas explicariam pelo viés da sinapse, astrólogos pela combinação astral, esotéricos por forças ocultas, historiadores pela tradição cultural do ocidente .... e, em algum momento, certamente apareceria um adepto de alguma teoria da conspiração, afinal, o futuro do império poderia correr algum risco iminente.

       Entre exclamações (dela), suplantadas pelas interrogações (dele), algumas linhas ou páginas por escrever ... ou ... simplesmente virar. O que foge a dicionários e regulamentos vários, como não lembrar Drummond, é o (des)encanto da suspiradora ... e a (des)coragem do imperador.

quinta-feira, 19 de julho de 2012



O imperador caminha pela névoa

       O imperador caminha pela névoa densa, como se contasse os passos, como se quisesse medir cada milímetro de seu território. Lembra um soneto de Neruda,

Tal vez no ser es ser sin que tú seas,
sin que vayas cortando el mediodía
como una flor azul, sin que camines
más tarde por la niebla y los ladrillos,
sin esa luz que llevas en la mano [...]


ele também carrega uma luz, peró la lleva en sus ojos. Alguém um dia já dissera que navegar é preciso, mas para ele, indispensável era caminhar.

       Foi em uma dessas caminhadas, que quase foi derrubado por alguém que açodadamente corria. Essa que corria, talvez corresse por necessitar de velocidade em seus dias ou simplesmente porque agradava-lhe sentir o vento contra no rosto. E foi sentindo o ar em movimento, que quase o derrubou no dia do esbarrão, mal conseguindo parar a tempo de evitar que colidissem. Olharam-se. E sorriram. Naquele dia, ela ainda não vira o anzol que havia em seus olhos, nem ele sentira os versos presentes nos suspiros dela.

       Trilharam por vias e estradas, diversas e adversas até o dia em que seus caminhos tornaram a cruzar-se. E quando isso aconteceu não estavam sós, embora o fossem, o que não a impediu de, enfim, sentir sobre si o sorriso contido no olhar, aliado à curiosidade, de que compartilhavam a respeito um do outro. Não, não eram inimigos, sequer adversários, mas aquele segundo – ou seria oficialmente o primeiro? – encontro serviu para que se avaliassem, calculassem e, amistosamente, medissem o impacto causado sobre seu interlocutor. Ela vislumbrara o homem no imperador e a mulher em si mesma que viria a despertar, como que aliciada, pelo visgo que havia no anzol.

                                   Aliciada, ela foi, vá lá. Mas porque quis, das delícias ao suplício. Vai ver  que achou que tinha alicerce. E tanto tinha que não perdeu a alucinada lucidez, nem mesmo na alegria inicial do cio, por mais variados que tenham sido os desvairados desvãos e os deslizantes desvios.

Claro, teve clima de vertigem, de jogo de espelhos, cada um mergulhando no outro e se reencontrando filtrado ao inverso. Explorando verso e reverso nas palavras tontas e nas lavras tantas, pavanas livres ou nirvanas parvos[...].” *



       O caminhante seguia seu ritmo, enquanto aquela que corria, diminuiu a velocidade do movimento, agora queria contemplar, já não havia tanta pressa. Contemplaram-se em festas ou por frestas, entre sorrisos e riscos e descobriram desejarem-se. Um desejo curioso, de olhar cuidadoso, e para rimar, um afeto ... zeloso.

        O homem imperador, que caminha, por vício ou vocação, vem de longe, quiçá d’além mar. Quais os caminhos por ele percorridos, por quais mares haverá navegado? Que dores terá provado, que medos terá guardados?
       Vez por outra ela some na névoa, propositalmente, por cuidado ou delicadeza, intuindo a imperiosa necessidade dele por isolamento. Além de um peculiar código de comunicação havia estabelecidos, entre eles, acordos tácitos.  Isola-se por necessidade ou por vontade? Isola-se por preocupação, por proteção, ou mesmo por solidão.
       Algumas vezes, a mulher precisa apressar o passo para aproximar-se quando se estabelece, entre os dois, a distância ou quando se adensa a névoa. Então, para poder alcançá-lo ela, diligentemente, amealha palavras e ... suspira ... versos ...

*(MACHADO, Ana Maria. Alice e Ulisses, Nova Fronteira. 2008)


sábado, 14 de julho de 2012



                                                         A nova queixa do imperador



       O imperador voltou a queixar-se !  E uma queixa de tal criatura, desacomoda a quem quer que lhe esteja próximo. A vida de imperador é por demais laboriosa, em meio a tantas audiências, e queixas alheias. Em sua agenda diária estavam convites para bailes da corte, compromissos diplomáticos, almoços e ceias obedecendo a um rígido protocolo estabelecido, colóquios nem sempre agradáveis dos quais participavam duques, arquiduques e marqueses. Os últimos, de particular importância, pela localização de suas terras às margens do império, garantia de vigilância e proteção às fronteiras. Afora isso, atender aos ávidos por ter concedidos títulos de nobreza. Mas suas atribuições não costumavam causar-lhe dissabor, atendia à nobreza e ao profanus vulgus com igual deferência.

       Era tarde, quase noite, quando do encontro. Ele, o imperador, sério, muito sério, havia quase dureza em seu olhar. Ela, a suspiradora de versos, caminhou em sua direção sorrindo, como de hábito - o encontro e a possibilidade daquele esperado abraço, eram sempre motivo de gozo. E foi depois do abraço, singularmente plural, que ele também sorriu. Olharam-se, conversaram,  mediram-se, desejaram-se ... e ele, então, queixou-se. A interlocutora nada disse, se dissesse, seria com as mãos, tocando-lhe o rosto, afagando.

       Insensível a olhar pro próprio umbigo, no momento da queixa, ela não deu-se conta imediatamente da gravidade do incômodo. Depois, sozinha, ao lembrar daqueles olhos, da seriedade que havia encontrado em seu semblante enquanto caminhava sorridente em sua direção  foi que deu-se conta da intensidade do desagrado.  Não bastasse sua insensibilidade, ainda      pedira-lhe algo que, naquele momento, era impraticável. Ah as mulheres e suas necessidades, sempre urgentes !!  

       Dito isso, este narrador de pretensões oniscientes tem a acrescentar, que o homem atrás do título é exatamente isso: um homem. E que, embora atenda de forma irretocável às suas responsabilidades, tem a prerrogativa de, por vezes, desejar não estar onde está, ou não ser quem é. Sobre a mulher, este que conta a história, entende sua natureza passional e o rebuliço que os olhos de anzol causam em seus sentidos, transtornam-lhe, despertam-lhe apetites. Sabe do quanto importam a ela os sentimentos dele, que preocupa-a vê-lo cansado, desanimado, desencantado; do prazer com que ela cria e envia-lhe versos, diariamente, como afagos.

       Frente a frente, aquela mulher diria àquele homem, longe dos olhos e ouvidos curiosos da corte e de todas as demandas que o exigiam:   Ah, imperador, meu imperador ... pra ti meus versos, meus suspiros, meus beijos, meus olhos, meus braços e abraços ... Porque ... de ti ... só quero ... mesmo ... a ti !!

sexta-feira, 6 de julho de 2012




A m o r   ...   e m   ...   c o n s t r u ç ã o   ...



Quero-te ... tanto ... que chega a doer ... na alma ...
...e já nem cabe ... mais ... em mim ...        

...Indistingue ... entre o que deseja ... o apetite ... e o que sente ... a fome ...
...E mesmo ... na incompletude ... me transborda ...
...Na ausência ... faz-se constância ... e no silêncio ... tropel ...

... estado febril ... mansa ... desordem ...

De olhares furtivos ... desejo velado ... intenções ... insuspeitas !!

Laço ... que cinge ... semântica ... e ... semiótica ...


... (re)significa ... a força ... do anzol ...

...(ele) inspira ... prosa ... enquanto .... (ela) suspira ... versos ...

Abraço ... singular ... de sentido ... plural !!

Ao ver-te ... de mim ... vertem ... versos ...

... vislumbre ... vaga ... vertigem ...

... que antecede ... o que ... (meu/teu) corpo ... pede(m) ...

... metade ... que falta .... vontade ... que sobra.

sábado, 28 de abril de 2012


Na esteira de queixas que parecem estar muito em voga no momento, alguém mais queixou-se e, por seu caráter passional, foi praticamente uma queixa sapateada, com direito a franzir de cenhos e espichar de beiços, coisa de menina caprichosa. Fotos, se houvessem, teria rasgado a todas, quebrado espelhos, devastado a cristaleira e dizimado a floreira do quarto em que brotavam inocentes lilazes.

Não era admissível que tanto tempo dedicado a tão elaborada missiva, não tenha movido o destinatário a esboçar ao menos um sinal de desagrado que fosse! Faltava—lhe, à remetente, uma reação por parte do interlocutor, o silêncio havia se traduzido em indiferença, descaso, era o que lhe parecia. E no silêncio, ecoavam mais que suas intenções ao enviá-la, flutuavam soltas as palavras tão meticulosamente escolhidas, e todo o sentido de que eram habitadas.

O ato de escolher palavras, para alguns, pode parecer mero agrupamento de signos, compostos por significado e significante, resultado de uma sinapse, simples assim ! Mas não para quem se debruça sobre o papel, e mais do que escolher palavras, abre sua memória sensorial em um esforço motivado pelo simples desejo de encantar através de significados, mostrar com aquelas palavras que está ali, inteira, intensa, despida de véus, esperando apenas por um gesto. Mas o gesto não vem, e ela não sabe, ela nunca sabe o que esperar, talvez o interlocutor o faça propositalmente, por pensar que assim não se compromete e, consequentemente, consiga manter-se intocado, em uma posição confortavelmente distante. E cabe perguntar se o preço pago por essa intangibibilidade vale, se manter-se em uma posição confortável, mas não desejável não é caro demais. É bem possível que a intensidade o assuste, o desconhecido sempre causa desconfortos.

Ela, por sua vez, também teme, acredite! Seus temores são de natureza diferente, mas teme. O pior de todos os medos é o de não saber nada do que se passa nos porões tão bem guardados e a que ela não tem acesso, não poder enxergar com clareza as coisas que acontecem à sua volta. Entende todos os riscos a que o outro está exposto por ser uma representação imagética,  e isso acredita ter deixado muito claro.

Em uma atitude totalmente desmesurada ela rascunha um bilhete em que diz: Não acredito que venha alguma resposta, não alimento mais expectativas. Tudo mentira, mecanismo de autopreservação, espera sim, embora dissimule não acreditar, como ela espera ! A ideia de querer tanto, mas tanto, e pensar que não era desejada com a mesma intensidade era-lhe insuportável, doía-lhe até os ossos. Cobra-se, então, uma atitude que ponha fim a essa angústia, a toda essa incerteza que a encanta intelectualmente mas que, fisicamente, a fadiga e só o que consegue é articular um enunciado patético: se não for como eu quero, então não brinco mais !

Passados alguns dias, ela pega, cheira, toca aquele pequeno objeto deixado em um cinzeiro qualquer, e que já esteve entre os lábios dele e é como se o tocasse, se o sentisse próximo e tenta racionalmente explicar o quanto aquela surreal atitude é ridícula, absurda. Já questiona se o que escreve são sandices criadas por alguém que deixa-se dominar pela atração intelectualmente física mais forte que já conheceu ou trata-se apenas de algo fisicamente intelectual que, ignorando os riscos inerentes a envolver-se com alguém que, sabe-se lá por que motivos, esconde-se por trás de uma atitude blasé e consegue distanciar-se da tempestade de sentimentos controversos pela qual é atravessada.

O quanto custa-lhe não brincar mais, ela sabe. O quanto os versos, a perspectiva de uma rima, o anzol ao qual a isca oferece-se natural e instintivamente, o cheiro que é mais que sentido,  é pressentido por uma memória sensualmente desenvolvida, o caminhar por um lugar que remete a um abraço no qual pode-se sentir que ambos tremem ante à limitada proximidade, e um roçar de lábios furtivo, mas intencionalmente calculado, o estar lá somente pela possibilidade de ser despida, ainda que somente pelo olhar, lhe farão a falta mais incoerente, absurda e insuportável que jamais imaginou sentir.

Fato, é que naquele momento em que imbuída do que considerava seu melhor – arranjar cuidadosa e meticulosamente as palavras, além de dotar-lhes de sentidos plenos – sentira-se ignorada, desprestigiada. Ah mulherzinhas e seus hormônios capazes de colocar em ebulição o mais tranquilo dos ambientes !!! Pensam em saídas dignas e honrosas que legitimem sua reputação de bem resolvidas e fortonas, empinam seus narizinhos independentes e rugem bem alto que aguentam o golpe, independente da força desferida. Que o importante é que ninguém saiba o que lhes vai por dentro, nada que um cuidadoso make-up não esconda, ainda que o azul-marinho e o vermelho formem uma combinação capaz de esmorecer qualquer decisão que, acredita-se, tenha sido racionalmente tomada.

Nem sempre o que ela espera é uma resposta elaborada, quer coisas simples como um cheiro, um toque, uma mão que pode sentir tremer quando se aproxima o abraço, um olhar onde mergulha e perde a noção de onde está e de quem é, ou até mesmo quaisquer “...” que aparentemente inocentes, dizem muito para quem desenvolveu, tacitamente, sofisticado código.

Beiços espichados à parte, vislumbra-se agora a birrenta, que por instantes sapateou de tão danada que estava, olhar pra cena que fez e sentir-se tão despropositada, injusta, desmedida nas atitudes, olhar de longe ... o que, ainda, deseja ter perto.


sábado, 21 de abril de 2012


O imperador queixou-se !
       A corte pôs-se, imediatamente, em polvorosa, e no burburinho que corria por todas as salas e corredores do palácio, uma única pergunta pairava no ar: O que, diabos, incomodava o soberano ?
       Seriam as acomodações reais, estaria o desjejum do regente sendo servido a seu gosto ? Talvez alguma das iguarias tão esmeradamente preparadas pela cozinheira não houvesse lhe caído bem, conjecturavam alguns. Ainda havia a possibilidade de seu travesseiro de penas não estar lhe trazendo bons sonhos, imaginavam outros. Ou, pior ainda, sua Domitila não estaria lhe satisfazendo as vontades. Hipótese imediatamente afastada por todos, afinal, um mesmo desejo consumia a ambos. Os jardins !!!  Só poderia ser esta a causa da queixa, não estariam sendo bem cuidados pelos relapsos jardineiros. Mas que maçada !  Perturbar a tranquilidade do rei por motivo tão trivial. Então surge nova onda de rumores, aparentemente nenhum dos motivos aventados inicialmente aproximava-se da real demanda, e a onda é substituída por outra e elas sucedem-se, infinitamente.
       O que seu fiel séquito jamais viria a saber, até porque nunca entenderiam, é que faltava-lhe uma rima. Tanto barulho por uma rima ??? Mas, os encantadores olhos de anzol do sujeito que era o senhor de todos os apetites de Domitila, necessitava de um predicado ou de um complemento verbal, quiçá um advérbio de intensidade.
       Porém, havia algo mais a apoquentar-lhe o juízo: haviam trocado seu nome, alguém, em algum momento que não se sabe precisar, havia trocado seu nome. O motivo da troca ? Improvável que fosse devido a uma desatenção ou lapso de memória. A hipótese mais plausível, aliás, a única aceitável seria – e então nesse momento, surge um novo elemento para compor a trama – a de que, temendo alguma conspiração tenha-se, por puro desvelo, criado um codinome no afã de protegê-lo de uma possível, mas invisível ameaça.
       Passada a desordem causada no Paço por aquele real desassossego, o Dom já não precisava assinar documentos ou missivas usando seu codinome. O que talvez ele não soubesse, e então fazia-se necessário esclarecê-lo, é que aquela havia sido uma forma de proteção, um excesso de cuidado por parte de quem não se importava que se chamasse Pedro, João, Joaquim, ou até mesmo Raimundo,  um homem ... a caminhar por esse vasto mundo ...

quarta-feira, 7 de março de 2012

O lobo, as mulheres,
o sono cortado,
um espelho quebrado
e acordo assustada
as palavras jorrando,
o sonho que volta, recorre,
é o mesmo.
Desisto do sono,
levanto e escrevo.
Elas dançam, me puxam
sacodem, retumbam com força
e crueza
na mente insone.
O velho, o chulo.
Minha língua se choca, com força,
no céu da tua boca.
Teus dentes, tão brancos,
arrancam pedaços
da carne febril
mastigam, trituram
e cospem pro alto
fetiche e luxúria.
Um filme,
 uma cena,
me viro na cama
e as vozes
 não param.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Lady Macbeth




                                                                         Por Tiago Silva

                                                                    Para Katia Moller




Oh Lady Macbeth, com teu sorriso sarcástico,

Tuas palavras ébrias, teus ritos incógnitos!

Atravessando a linha inaudível, dirijo-me a ti!

Banho-me nas tuas virtudes descomunais,

Na tua essência juvenil, no teu colo apaziguador!

Não poderia ausentar-me da tua presença,

Sem sofrer calamidades,

Sem buscar tua face nas nuvens,

Sem sentir-me pela metade.

Oh Lady Macbeth, com tua ironia admirável,

Teu abraço desconcertante, tua companhia inenarrável!

Perdido em teu solo fantasioso, dirijo-me a ti!

Deito-me em teus olhos, desmaio sob tua face!

Impensável seria viver longe de tua mente embriagante,

Teus ditos insondáveis,

Tua identidade cativante, tua magnitude incurável!

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012


       Só escrevo quando vivo intensamente, há momentos em que é como mergulhasse e ficasse sem respirar por algum tempo, que me parece durar uma eternidade. E, nesses momentos, não produzo, não me sinto capaz de escrever um parágrafo sequer, escrevo apenas frases, que são fragmentos que me preparam para a próxima descarga de intensidade que está por vir.

       Porque intensidade é tudo, tudo do que preciso para escrever. Talvez por isso, como me disse uma amiga, minha escrita é real, porque só escrevo a partir do que realmente vivo e da intensidade que esse viver pressupõe. É ela quem me impulsiona sempre a dar os próximos dez passos em direção à utopia, sabendo que sempre precisarei de mais dez, e mais dez.

       A partir das muitas personalidades e facetas que vou descobrindo em mim, é que se descortina minha escrita. E é só me permitindo viver e elaborando, digerindo cada uma dessas vivências, que vou conhecendo as muitas mulheres existentes, como diria Almodovar, na pele que habito.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Receta de quererte - Junho/2011


Con urgencia, pero sin prisa

Con calma, pero desesperada

Con delicadeza y fuerza

Duda y certeza

Alegría y dolor

Tímida y sin pudor

Sonriendo y llorando

Durmiendo y despierta

In English y en Español

Con música y en silencio

Parada o corriendo

Con vino o cerveza

Carne o pez

Salado o Dulce

Café o leche

Helado o caliente

Azul o rojo

Algodón o lana

Seda o lino

Real o encantado

El  último y el primero

Siempre y nunca más

Eterno y fugaz.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Sob a cama

“ Ainda lembrava dos dias da infância em que, deitada no chão da área da casa da avó, ficava horas observando nuvens e atribuindo-lhes formatos de coisas conhecidas, ora um elefante, ora um dinossauro, outras vezes um cachorro. Só bem mais tarde, viria a saber que suas interpretações, tanto das nuvens da infância como dos livros que viria a ler mais tarde, seriam baseadas em sua visão de mundo, o que chamamos de subjetivo.

       Houve um tempo em que sua imaginação fertilíssima permitiu-lhe pensar que pessoas poderiam vestir uma fantasia e fingir-se de cachorro. Passou a olhar, então, para os pobres animais, com a desconfiança de que poderia estar sendo espionada por algum adulto. Depois de ouvir as histórias contadas pela avó, sequer ousava por a mão para fora dos limites do colchão, imaginando que monstros terríveis poderiam habitar embaixo da cama. Não conhecia os monstros de armário, tão comuns nos dias de hoje, os seus ficavam espreitando sob a cama, esperando o melhor momento de puxar-lhe pela parte do corpo que pusesse pra fora.

       Jamais sairia de sua memória a história da criança que, por não ter escovado os dentes, teve o rosto roído por ratos, ou da cobra que mamava nos seios da mãe e dava ao filho sua cauda como substituta ao seio materno. Ou ainda das bruxas que durante a noite faziam tranças nas crinas dos cavalos, ou de vampiros que atacavam o gado nos campos. Tantas histórias, muitas vezes, a faziam ver vultos demoníacos nas sombras, passar correndo por lugares escuros, inventar sortilégios que a protegeriam desses seres fantásticos.”

       Histórias de bruxas, monstros e fantasmas sempre povoaram e devem continuar povoando o imaginário infantil, provavelmente o primeiro contato que temos com a literatura. Não a literatura incorporada por livros, mas a história oral, aquela que é passada de uma geração à outra em tardes chuvosas de inverno ou em noites frias antes de se ir dormir, ou até desencadeada por alguma lembrança.

       A necessidade da fabulação, de imaginar-se e viver hipoteticamente essas histórias é inerente ao ser humano, precisamos viajar através de nosso imaginário. Segundo Antônio Cândido, a literatura tem o poder de humanizar, e nada mais humanizador que se colocar em diferentes situações, sejam elas felizes ou não. O exercício de viver outras vidas sem sair da sua, ter experiências que, normalmente não se teria e entregar-se visceralmente a elas, como se fossem reais, esse sim, é o exercício humanizador que somente através da literatura conseguimos, venha ela até nós da forma oral ou escrita.

       A literatura nos permite conhecer países, culturas, pessoas, sentimentos que nos trarão marcas indeléveis e auxilia na construção de nosso subjetivo, ampliando nosso conhecimento de mundo. Nos constituímos, em grande parte, pelo que lemos ou pelo que ouvimos alguém nos contar com todo seu gestual característico, o que não deixa de ser, também, uma leitura.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Como alguém já disse ... felicidade é um estado de ser ...

Desta vez me deixa
ser feliz.
Nada aconteceu a ninguém,
não estou em parte alguma,
simplesmente sucede
que sou feliz        
pelos quatro costados
do coração, andando,
dormindo ou escrevendo.
O que posso fazer, sou
feliz.
( ... ) Tu a meu lado na areia,
és areia,
tu cantas e és canto,
o mundo
é hoje minha alma:
canto e areia
o mundo
é hoje tua boca;
me deixa
em tua boca e na areia
ser feliz (... )

Pablo Neruda

... Talvez sem motivo algum, ou por todos os motivos ...

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Patrícia ... uma personagem

       Combinamos uma saída para beber e outras cositas más, nos encontramos e partimos para a imprevisível jornada. No bar, como de costume quando o grupo se reúne, muitas risadas acompanham a bebida e comentários filosóficos brotam por todos os lados.


       Em determinado momento, saímos todos para dar uma volta, havia uma cerimônia de iniciação a ser realizada. Uma amiga experimentaria, protegida pelo calor do restante do clã, um prazer ainda desconhecido. Saímos os sete, número cabalístico, mais a iniciada e o filhote de gato que uma das meninas havia encontrado em uma casa abandonada e resolvera trazer consigo, então, demos início à cerimônia, todos caminhando e, em nossas mãos, os copos de cerveja.


       Durante a cerimônia, alguém comenta “mas esse negócio era maior, acho que tu já usou, isso tá menor agora, risos” e penso “será possível, o cara ainda nem fumou e já tá viajando, esse troço deve ser muito bom mesmo”. Como diz a música, foi mais ou menos assim: ...acende, puxa, prende, passa..., em instantes a alegria era geral e facilmente constatada pelas risadas do grupo, que iniciava a viagem insólita.


       Uma de minhas constatações da noite foi: só quem já desfrutou dos prazeres de Mari Juana, é capaz de entender seus efeitos. E fiquei alguns momentos divagando se os estudiosos do assunto, alguma vez, teriam compartilhado da sensação que é algo de aprisionante e libertador, ao mesmo tempo. Mas, quem a conhece sabe que as divagações seguem rumos nem sempre coerentes e, muitas vezes, nos pegamos tentando descobrir como os pensamentos chegaram ao pensamento atual, como se quisesse estabelecer uma linha pela qual pudéssemos nos guiar. Óbvio, uma tentativa inútil, mas que ajuda passar o tempo e distrai, momentaneamente, da paranóia que se apodera da mente nesses momentos.


       Aliás, paranóia é a palavra chave dessas ocasiões. Temos a nítida impressão de que está escrito na testa: fumei. Sou normalmente escrava do relógio, e quando encontro com Mari isso se torna ainda pior, chego a consultar o relógio, em média, a cada três minutos com medo de perder o ônibus, com pânico de não conseguir chegar em casa, de não conseguir descer na parada certa, de dar muita bandeira, de falar merda.


       Em contrapartida, o que é muito interessante, é a consciência de tudo o que está acontecendo, ela continua lá, embora pareça que estamos fora do corpo, continuamos nele mesclando as posições em nossa história de narrador e personagem, fora e dentro de nosso corpo. Talvez, em situações normais, não nos apercebamos de detalhes que, em situações como esta, saltam aos olhos. Ouvi conversas interessantes enquanto esperava pelo ônibus, um babaca que se vangloriava para uma, como vou definir, sem noção, de já ter batido em mulher, dirigido bêbado e ainda andar pelas ruas à noite fingindo que iria atropelar quem encontra caminhando. Ah, fala sério!! O cara é um idiota e a não menos idiota achando tudo aquilo bonito, normal. Depois eu é que to muito doida.


       Teve um momento em que estava fumando na rua com uma amiga e ela começou a me dizer “escuta, ouvi um papo.....”, imediatamente pensei “puta merda, alguém descobriu ou tá desconfiado do meu rolo com...”. Mas não era!!! Esse foi um dos momentos em que me dei conta do tamanho da minha loucura. Ainda agora, em casa escrevendo confortavelmente vestida com uma calça de moleton velha, uma camiseta não menos, os cabelos presos de uma forma desleixada, sem esquecer os óculos, coisa de quem já tem 40 ou mais, depois de ter bebido quase todas, ter rido muito de quase tudo e, pra finalizar ainda vomitado os pés, sentada no cordão da calçada, é como se ainda estivesse sob o efeito da insólita viagem. A situação toda, naquele momento, me pareceu Bukowskiana. Fumamos, bebemos, vomitamos, viajamos ... mas tudo com muito, muito estilo. Saldo positivo. Mas, pensando bem, porque a necessidade de classificar ou pesar o valor da noite, se foi só mais uma, como tantas outras ... na vida de Patrícia.



terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

La utopia es caminar

sábado, 4 de fevereiro de 2012

utopia
(latim tardio utopia, palavra forjada por Thomas More para nomear uma ilha ideal em A Utopia, do grego ou-, não + grego tópos, ou, lugar)

s. f.



s. f.

1. País imaginário em que tudo está organizado de uma forma superior.

2. Sistema ou plano que parece irrealizável.
3. Fantasia.
      
       E lá vamos nós, novamente, analisar, porque temos a necessidade mórbida de dissecar, esmiuçar tudo.
       Em nenhum momento a definição do dicionário sobre a palavra utopia a descreve como algo impossível, irrealizável, chega a defini-la como: "que parece irrealizável", veja bem, parace. E nem tudo o que parece, realmente é.
       Fantasia? Pode ser, mas quem pode garantir que não se torne ou seja real para quem a vive, muito se realizou partindo de uma fantasia, de algo que muitos duvidavam ou, com os pés e os olhos demasiadamente fixados no que é comum, e por isso mais simples, não acreditavam ser possível.
       E o que dizer de "País imaginário em que tudo está organizado de uma forma superior"? Esta, na minha opinião, o que não quer dizer grande coisa, é a melhor, a mais poética de todas, muito significativa. Imaginar um lugar onde fosse possível uma existência superior, que fugisse do comum, um modo raro de viver.
       Seria, realmente, uma fantasia escolher para si o modo raro de existência? Deveríamos nos conformar com uma existência medíocre, habitando somente a parte rasa, sem profundidade e, por isso mesmo, confortável?  A zona de conforto pode  proporcionar estabilidade, segurança, por algum tempo, mas nos relega a papéis secundários se não a abandonamos, e deixa de ser tão interessante quanto parecia a princípio, vira prisão.
       Pode até ser utópico, mas quem escolhe e, principalmente, vive intensamente uma existência rara, com seus ônus e bônus, jamais se arrepende, ao menos não pela omissão e se solidariza com as dores alheias, consegue equilibrar-se entre inteligência e emoção que, separadas, perdem seu valor. Porque raro mesmo, é quem vive intensamente prazeres e dores, sem temer olhar o espelho e surpreender-se com a imagem que verá refletida.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012


       Recebera um dia, alguns versos rasgados, de amores inventados, enquanto dormia. Mas mesmo insone e absorta que estava, por suas mazelas, trazia consigo a incapacidade de olhar pro lado, e ver, ou apenas permitir-se sentir. Talvez o único papel desejado fosse o de expectadora da própria existência, afinal, quem assiste não assume os riscos, apenas se deixa conduzir pela história de um narrador cansado e sem imaginação.

       Havia um discurso bonito, de que não queria nada previsível em sua vida, estacionado nos lábios como carro velho, que estraga e o dono não quer mandar rebocar, por achar que não vale o investimento. O medo do desconhecido e, principalmente, de perder o controle já havia se estabelecido e não deixava que desse nenhum passo, imobilizava-a completamente e anestesiava seus sentidos, impedindo a entrega.

       Optara, então, pelo mais simples, que não oferecia riscos, por ficar no raso e só molhar os pés, porque sentir-se desnuda pelo olhar de quem sabia compreender seus intertextos, seria muito perturbador e acabaria com sua tranquilidade e com a imagem a tanto custo forjada.

       Tarde demais, agora era só um carro velho, abandonado no meio fio, esperando por gatos ou cães de rua, como visitantes eventuais em madrugadas frias durante o inverno.
sarcasmo
(grego sarkasmós, -ou)
s. m.
s. m.
Ironia amarga e insultuosa. = ESCÁRNIO


transparência
(transpar[ecer] + -ência)
s. f.
s. f.
1. Qualidade do que é transparente. = DIAFANEIDADE
2. Superfície ou tecido transparente.
3. Película ou folha de material transparente onde se escreve ou imprime o que se destina a ser reproduzido com um .retroprojetor. = ACETATO

       Duas palvras, como no conto de Isabel Allende, somente duas palavras. Mas com significados totalmente diferentes, faz-se uso delas em situações diversas, com objetivos contrários.
       A primeira, sarcasmo, como a definição bem explica, é usada quando se quer insultar, ferir e, porque não dizer, tripudiar. Sua utilização pode vir devido aos mais variado fatores, se formos analisar detidamente o que leva alguém a desejar insultar outro. Talvez por insegurança, o que seria compreensível, uma vez que não se ataca quem não oferece perigo, ou autoafirmação: preciso mostrar o quanto sei ser sarcástico, como sei fazer uso das palavras, arranjá-las de uma maneira que venha a comprovar, até para mim mesmo, minha habilidade. Ou por rancor, quem apanha, ou pensa que apanhou e não elaborou, precisa bater de volta.
       A segunda, transparência, definida como "qualidade do que é transparente", e poderia completar com: aquele que se deixa ver, que não se esconde, não se camufla e que, finalmente, não precisa usar de sarcasmo, porque faz e diz exatamente tudo o que pensa ou faz. O transparente não tem receio de visualizações e, muitas vezes, pode deixar margem a interpretações equivocadas mas, ainda assim, continua sem se esconder atrás de uma agressividade dissimulada, não precisa atacar para se defender. Aliás, nem sequer se defende, porque simplesmente não precisa, seus atos  e palavras falam por si, não guarda rancores ou alimenta mágoas, e suas feridas aparecem expostas, sem pudores.
       Semanticamente podemos conhecer ambas, associar a comportamentos, situações ou mesmo pessoas que tenhamos conhecido. Mas, e volto a usar uma expressão de que gosto muito, e a habitação da palavra? Assim como só compramos uma roupa e a usamos antes de um prévio exame diante de nossos espelhos, da mesma forma escolhemos as palavras e atitudes conforme o sentido que lhes atribuímos. Habitamos plenamente o sentido das palavras.
       Prefiro, particularmente, a segunda. Por que? Pelo sentido e pela tranquilidade que me proporciona, por saber que ainda que não seja agradável a todos os que enxergam através, é exatamente isso o que estão vendo, gostem ou não. Da primeira, só conheço a semântica e prefiro não fazer uso.
       Poderia ter incluído mais uma palavra para explorar o sentido: respeito. Bonita em seu significado e que serve até para  justificar, ou não, o uso das anteriores na plenitude de seu sentido.
       Já tenho as minhas, escolha as suas !!!
      
      

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

      
       "Não me pergunte por que, mas, contrariando minha natureza, precisei ferir, libertar o ser abissal. Batia no espelho, feria a mim mesma naquela ânsia."
       Depois de fazer aquela merda toda, desculpar-se seria, na melhor das hipóteses, patético. Ele saiu batendo a porta e deixando atrás de si os destroços de um furacão tropical. Ela, do alto da arrogância peculiar e tomada por uma fúria incontida quebrou a louça, arrancou quadros da parede, dizimou a coleção de vinis que jazia partida em pedaços espalhados pelo piso, atirou os vasos de plantas, rasgou a suas roupas como se fossem a própria pele. Chutaria o cachorro ou o gato, caso tivesse um. Numa demonstração de passionalidade em estado puro, sentia-se sacaneada pela vida, não era nada pessoal e sabia que, em se tratando de relacionamentos, as sensações prazer e dor são diretamente proporcionais. Mas não aprendia, talvez nem mesmo quisesse aprender, maturidade naquele momento era o que menos tinha importância.
       Bateu-se a porta. Ele saiu. Calado, como sempre. Levava consigo suas dores antigas que recusava-se teimosamente a dividir e alguns poemas, além da dor causada pelo holocausto da coleção de vinis. Não dissera nada, não alterara a voz e sequer os batimentos cardíacos, estivera absolutamente no controle. Controle. Controle. Controle... E isso é tudo o que o narrador tem a dizer sobre a reação dele, não por desconhecer que tivesse lá suas dores, elas estavam todas ali, ensurdecedoramente mudas e o caos instalado era bem maior que o que ficara atrás da porta fechada.
       Ou não, talvez este que vos conta essa história só queira torná-la mais interessante, ou apenas goste de idealizar. Se foi ou não ... Só os protagonistas saberão.

... Só enquanto eu respirar ...

       Ainda prefiro acreditar nas pessoas, não sei se por credulidade ou por ser menos doloroso de encarar. Mas é melhor se pensar que alguém se sente perdido ou confuso, do que simplesmente constatar que as pessoas são filhas da puta por natureza. Até porque, se doa quem quer e pode. Quem recebe, decide o que fazer com isso.
       Habito tudo o que digo de sentido, valorizo demais as palavras pra expulsá-las da minha boca com descaso.
       É o que tem pra hoje, boa noite!!
      

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Adaptação do conto "Dos Palabras" de Isabel Allende

                                                          Duas Palavras

Tinha por nome Belisa Crepusculário não por batismo ou escolha de sua mãe, mas porque ela própria o procurou até encontrar e com ele se adornou. De família tão miserável que nem sequer possuía nomes para dar aos filhos, até 12 anos não teve outra ocupação senão a de sobreviver à fome e à fadiga de séculos.
       Disposta a enganar a morte, decidiu andar em direção ao mar. Chegando a uma aldeia, o vento jogou a seus pés uma folha de jornal, pegou aquele papel amarelado e quebradiço que viria a transformar sua existência. Nesse dia, soube que as palavras andam soltas, sem dono, e q qualquer um com um pouco de manha pode pegá-las para vender.
       Vender palavras tornou-se seu ofício, percorrendo o país, instalando-se em feiras onde montava sua tenda para atender a clientela. Não precisava anunciar sua mercadoria, logo que se sabia de sua presença, formavam-se filas à sua espera.
- 0,05 versos de memória
- 0,07 melhorava a qualidade dos sonhos
- 0,09 cartas a namorados
- 0,12 inventava insultos para inimigos irreconciliáveis
       Também vendia contos, que eram longas histórias verdadeiras, era portadora de notícias entre os vilarejos, juntando sempre à sua volta uma multidão ansiosa por ouvi-la. A quem lhe comprasse 0,50 dava de presente uma palavra secreta para afugentar a melancolia. Cada um recebia a sua, com a certeza de que será única.
      Um dia, enquanto vendia argumentos de justiça a um velho que solicitava sua pensão há 17 anos, o barulho da feira é interrompido pela nuvem de pó causada pelos cavalos dos homens do Coronel, comandados por Mulato, conhecido pela rapidez de sua faca e pela lealdade a seu chefe.
       Sempre ocupados na guerra civil, os homens do Coronel estavam associados ao malefício e à calamidade, deixavam atrás de si, por onde passavam, destroços de um furacão. Sua chegada à feira provocou uma debandada geral, só permanecendo Belisa Crepusculário que não os conhecia.
- Procuro-a. – Gritou Mulato, os homens a amarraram e a levaram consigo em direção às colinas. No acampamento, foi informada de que o Coronel necessitava de seus serviços. Iluminado pela luz de uma tocha, ela viu a pele escura e os olhos de puma, percebendo que estava diante do homem mais solitário do mundo.
       Cansado de ver o terror estampado nos olhos dos outros quando o viam, queria entrar nas aldeias sob os arcos de triunfo, queria ser eleito presidente e precisava das palavras para seu discurso. Belisa nunca havia recebido encomenda semelhante, mas não ousou recusar-se, o calor emanado da pele daquele homem, o desejo de poderoso de tocá-lo, percorrê-lo com as mãos, apertá-lo entre os braços, a fez aceitar o trabalho.
       Passou toda a noite e boa parte do dia seguinte, amarrada pelas canelas a uma árvore, ora descartando, ora escolhendo as palavras apropriadas para um discurso presidencial. Ao terminar foi levada à presença do Coronel, entregou-lhe o papel e aguardou enquanto ele a olhava, segurando-o com a ponta dos dedos:

- Que merda diz isso aqui? – Perguntou.
- Não sabe ler?
- O que sei fazer é guerra!

       Ela leu o discurso em voz alta por três vezes e, enquanto lia, pode ver a emoção no rosto dos homens da tropa e o entusiasmo nos olhos amarelos do candidato, que tinha como certa sua eleição com o discurso.
- Quanto lhe devo pelo trabalho, mulher?
- Um peso, Coronel.
- Não é caro. – disse ele enquanto pegava o dinheiro para pagá-la.
- Além disso, tem direito a uma prenda. Correspondem-lhe duas palavras secretas.
- Como é isso?

       Ela explicou que, por cada 0,50 que o cliente pagava, oferecia-lhe uma palavra de uso exclusivo. O homem deu de ombros e resolveu aceitar, não querendo ser indelicado com quem o servira tão bem.
       Ela aproximou-se, sem pressa, da cadeira de couro em que ele estava sentado e inclinou-se. Então ele sentiu o cheiro que vinha daquela mulher, o calor de seus quadris, o roçar terrível de seus cabelos, o hálito de hortelã pimenta sussurrando-lhe ao ouvido as duas palavras.
       Ao acompanhá-la até a beira do caminho, o Mulato olhou-a com olhos suplicantes de cão perdido, mas quando estendeu a mão para tocá-la, ela o rechaçou com um jorro de palavras inventadas, que ele pensou se tratar de alguma maldição irrevogável.
       Nos quatro meses seguintes, o Coronel percorreu o país pronunciando seu discurso, encantando cidades e aldeias esquecidas, fascinando seus eleitores com a clareza de suas propostas e com a lucidez poética de seus argumentos. Deixava atrás de si um rasto de esperança que permanecia muitos dias no ar, aquele homem forjado por guerras e cheio de cicatrizes tornara-se um fenômeno nunca visto.

- Estamos indo bem, Coronel. – disse o Mulato ao fim de doze semanas de êxito.

       Mas o candidato não ouviu, repetia as palavras secretas como vinha fazendo cada vez com mais frequência para abrandar a nostalgia, adormecido, surpreendia-se saboreando-as nos momentos distraídos. Sempre que as repetia, evocava a presença de Belisa Crepusculário e as sensações que ela lhe causara.
       Começou a andar como um sonâmbulo e seus homens compreenderam que sua vida se tinha acabado antes de alcançar a cadeira dos presidentes. Um dia confessou a Mulato o motivo de sua perturbação: as duas palavras que trazia cravadas em seu ventre.
       Cansado de ver o chefe definhar, o Mulato partiu em busca de Belisa Crepusculário e encontrou-a em uma aldeia à sua espera. Guardou o tinteiro, dobrou o pano da barraca, pôs o xale nos ombros e, em silêncio, montou na garupa do cavalo.
       O desejo que Mulato sentira por ela havia se transformado em raiva e temor. Aquela mulher lograra com um encantamento o que anos de batalhas não haviam conseguido. Levou a prisioneira ao candidato, diante de toda a tropa.

 
- Coronel, trouxe essa bruxa para que lhe devolva suas palavras e para que ela lhe devolva a hombridade – disse, apontando o cano da espingarda para a nuca da mulher.

       O Coronel e Belisa Crepusculário olharam-se longamente, medindo-se à distância. Os homens compreenderam, então, que seu chefe já não se podia desfazer do feitiço das palavras endemoninhadas, porque todos puderam ver os olhos carnívoros do puma tornarem-se mansos quando ela avançou e lhe pegou a mão.