quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Sob a cama

“ Ainda lembrava dos dias da infância em que, deitada no chão da área da casa da avó, ficava horas observando nuvens e atribuindo-lhes formatos de coisas conhecidas, ora um elefante, ora um dinossauro, outras vezes um cachorro. Só bem mais tarde, viria a saber que suas interpretações, tanto das nuvens da infância como dos livros que viria a ler mais tarde, seriam baseadas em sua visão de mundo, o que chamamos de subjetivo.

       Houve um tempo em que sua imaginação fertilíssima permitiu-lhe pensar que pessoas poderiam vestir uma fantasia e fingir-se de cachorro. Passou a olhar, então, para os pobres animais, com a desconfiança de que poderia estar sendo espionada por algum adulto. Depois de ouvir as histórias contadas pela avó, sequer ousava por a mão para fora dos limites do colchão, imaginando que monstros terríveis poderiam habitar embaixo da cama. Não conhecia os monstros de armário, tão comuns nos dias de hoje, os seus ficavam espreitando sob a cama, esperando o melhor momento de puxar-lhe pela parte do corpo que pusesse pra fora.

       Jamais sairia de sua memória a história da criança que, por não ter escovado os dentes, teve o rosto roído por ratos, ou da cobra que mamava nos seios da mãe e dava ao filho sua cauda como substituta ao seio materno. Ou ainda das bruxas que durante a noite faziam tranças nas crinas dos cavalos, ou de vampiros que atacavam o gado nos campos. Tantas histórias, muitas vezes, a faziam ver vultos demoníacos nas sombras, passar correndo por lugares escuros, inventar sortilégios que a protegeriam desses seres fantásticos.”

       Histórias de bruxas, monstros e fantasmas sempre povoaram e devem continuar povoando o imaginário infantil, provavelmente o primeiro contato que temos com a literatura. Não a literatura incorporada por livros, mas a história oral, aquela que é passada de uma geração à outra em tardes chuvosas de inverno ou em noites frias antes de se ir dormir, ou até desencadeada por alguma lembrança.

       A necessidade da fabulação, de imaginar-se e viver hipoteticamente essas histórias é inerente ao ser humano, precisamos viajar através de nosso imaginário. Segundo Antônio Cândido, a literatura tem o poder de humanizar, e nada mais humanizador que se colocar em diferentes situações, sejam elas felizes ou não. O exercício de viver outras vidas sem sair da sua, ter experiências que, normalmente não se teria e entregar-se visceralmente a elas, como se fossem reais, esse sim, é o exercício humanizador que somente através da literatura conseguimos, venha ela até nós da forma oral ou escrita.

       A literatura nos permite conhecer países, culturas, pessoas, sentimentos que nos trarão marcas indeléveis e auxilia na construção de nosso subjetivo, ampliando nosso conhecimento de mundo. Nos constituímos, em grande parte, pelo que lemos ou pelo que ouvimos alguém nos contar com todo seu gestual característico, o que não deixa de ser, também, uma leitura.

1 comentários:

Júlia R. disse...

Realmente, a literatura nos transporta, transborda e humaniza...
Texto primoroso, Katita!

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